Ele era um jovem recém-ordenado sacerdote da Igreja
Católica Apostólica Romana, designado na função de professor de Ciências Naturais a um
colégio da minha cidade. Empolgou-se tanto pela beleza e a natureza da
bela ilha catarinense que se tornou como paleontólogo, um grande investigador
dos mais remotos sítios locais onde coletava fósseis. Circulava em um jipe
adaptado com molas reforçadas que elevavam a carroceria do veículo em relação
ao rodado, dando certa altivez ao carro que se compatibilizava a uma altura avantajada
e robustez do padre Müller, alemão de origem suíça.
As inúmeras investigações e coletas de materiais
agigantaram-se ao longo de uns trinta anos, o que o levou a criar um museu anexo
ao colégio no qual trabalhava. Na busca pelo material científico, o padre encontrava em suas andanças, magníficas orquídeas e as catalogava,
reunindo uma significativa coleção.
Conheci o religioso como orquidófilo, por eu também
ser um admirador de orquídeas e possuir algumas, já que o clima da ilha é
propício ao cultivo da espécie, pois pouco cuidado exige. Basta deixá-la em
local sombreado e com alguma umidade - ambiente necessário e suficiente para
eternizar a existência e a reprodução das plantas; sendo que o padre mantinha-as num enorme orquidário, sob frondosas árvores seculares, nas dependências do
estabelecimento de ensino, local em que seguidas vezes fui visitar.
O tempo passou, Müller adoeceu, e por grande zelo
tido às suas plantas, dificilmente sedia qualquer muda que fosse. Eu era fascinado por diversos exemplares das raras espécies vistas apenas em
seu orquidário, as quais por insistência, ele prometeu-me ceder uma ou outra à época do replantio.
Num fim de tarde, padre Baron, diretor do colégio e
primo sanguíneo de Müller, telefonou-me avisando da chegada do tempo de replantio
das orquídeas; e que eu fosse lá, a pedido do orquidófilo, pegar certas mudas que
ele havia reservado. E à noitinha fui me haver com o padre Müller.
Bati à porta de seus aposentos e veio ele
atender. Sem vê-lo há bastante tempo, estranhei a decrepitude de seu estado
físico. O homem forte, comparado a um
touro selvagem, ali esquálido parecia um terneiro desmamado e trôpego. Como se
fosse um balão inflado à plenitude e estourasse - remanescia apenas em
arcabouço de suas formas. Ele constituía-se em uma sombra magra curvada, portando a mão esquerda sobre o alto-ventre, levemente abaixo do abdome
superior, enquanto me estendia a mão direita retirada vagarosamente da maçaneta da
porta, cumprimentando-me com voz plangente e rouca pelo cansaço. Imediatamente,
perguntei o que lhe havia acontecido. Ao certificar que ele estava com câncer e a sua
existência, quase em estado terminal, arrepiei-me...
Ao entrar no quarto, senti um inconfundível cheiro
de álcool, e conhecendo o professor como abstêmio, imaginei ser a imersão de
algum pequeno animal em conservação aos seus estudos. Mas ele explicou-me estar
a inalar vapor de álcool para aplacar sua intensa dor, obtido pelo auxílio de
uma toalha embebida à saturação total de etanol. Logo percebi ter de desistir
da minha segunda intenção, além da busca por mudas de orquídeas – que seria uma
confissão superficial de meus pecados, tendo em vista que meu filho faria, em
breve, a Primeira Eucaristia e eu que há tempo não confessava, precisando tomar
a hóstia consagrada junto a ele, pensei aproveitar a oportunidade a ver-me
livre da obrigação cristã relegada. Já disposto a abandonar o segundo
propósito, um impulso veio-me ao intento. Falei ao religioso do propósito em me confessar, mas não
em confissão ortodoxa, e sim numa simples conversa entre dois amigos. Em sua
retidão prussiana respondeu-me que se eu quisesse confessar ele apanharia a estola
para o Sacramento, o que fez em um passo de mágica, alcançando de algum lugar uma faixa de cor desbotada pelo tempo, em tecido brilhoso já carcomido ostentando
uma cruz em cada extremidade que se tornava um pouco mais larga, a qual
trançou por detrás do pescoço. Em ato a se pôr de joelhos, eu o paralisei com
uma negação.
E voltamos à conversa descontraída, confidenciei a ele de que eu não me achava digno de confessar
e tomar a Eucaristia por estar, depois de longo tempo na trilha de devoto
cristão fervoroso, meio descrente de tudo, visto que até mesmo, chegava a
duvidar da real existência Divina. Porque Deus, na minha visão, seria uma
espécie de mão grande, um todo poderoso alienígena como um espírito feito de
antimatéria, ou supostamente um grande general que após vencer todas as guerras
do universo, reinava absoluto e soberano já sem vontade para subjugar os
vencidos, devido à extraordinária superioridade diante dos medíocres ou míseros
outros elementos das diversas galáxias, e docilmente procurava apenas ajudar os
fracos, por isso seria a hora dele, quem sabe, agarrar-se a esse suposto deus.
Dito aquilo, o padre Müller emocionado,
confessou-me ser padre há quarenta e tantos anos, mas desde menino procurava
por uma visualização de Deus a fim de ilustrar a sua crença, sem conseguir
vislumbrar algo relativo ao que buscava. E que eu, naquele momento, estava sendo a ele um anjo que veio e o apresentou um deus concebido, pronto e acabado não em forma, porém, conforme a simplicidade de alma que
eu tinha, sendo a minha fé inabalável e extraordinária.
Sem querer, já sentados, segurei a mão esquerda do
padre, beijei-a com ternura e choramos juntos. Terminada a forte emoção nos ajoelhamos frontalmente. Ele persignou-se, beijou uma das pontas da estola
e em seguida eu proferi, ao benzer-me: Padre dê-me a vossa bênção porque
pequei. Os meus pecados são...
Duas semanas depois, de volta de uma viagem
habitual de serviço, tive a notícia de que o padre Müller tinha falecido, então fui à
capela do colégio participar da missa de sétimo dia e rezar por sua alma. Foi quando me senti
junto de Deus e do padre Müller pela última vez, mas com uma das suas orquídeas (a mais
rara), com a qual ainda converso de vez em quando, convencendo-a a florir maravilhosamente
e ela sempre me atende em dezembro para encanto meu, da família e de amigos.