Linguagem[+]

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O TUBARÃO CACHORRO



Armação do Itapocoróy, Penha, SC, Brasil
ARMAÇÃO DE ITAPOCORÓI

A história que eu conhecia em parte e a confirmei, ocorrida em praia de pescadores artesanais do litoral catarinense, local onde fui criado, passou-se há muito tempo, mesmo assim, guardo várias lembranças e um episódio em particular. Os habitantes dali eram, em sua maioria, de descendência portuguesa com a predominância de pessoas vindas dos Açores em meados do século XVIII, e ali se estabeleceram dedicando-se à faina pesqueira. Muitos viviam em função de uma armação baleeira que, à época, servia de base à extração do óleo de baleia, produto usado na iluminação e à exportação. 

Em razão de meu esquecimento dos detalhes, conferi alguns dados do causo em foco, com pescadores do lugar, onde possuo uma enormidade de amigos e com meu primo Cláudio Bersi de Souza, emérito conhecedor da história da região, cujo fato teria acontecido com nosso tio-avô, o senhor João Nepomuceno de Souza.

Sabe-se que tio João costumava ir à lida sem camarada, por gostar de pescar sozinho. Contava apenas com a ajuda da força de um madrugador para colocar sua canoa ao mar, feita de um só tronco de garapuvu. E ainda, na pouca luz do dia nascente, lá ia ele à força do remo de pá ao encontro das presas, a cerca de quatro milhas da praia. Levava na balaia, já iscado, o seu espinhel fino de uns duzentos anzóis e fundeava-o um pouco mais em terra. Enquanto ficava no aguardo do que seria capturado naquele aparelho, remava mais para fora, e pescava de linha e de caniço. Estava sempre munido de iscas adequadas às águas profundas, destinadas às presas maiores como mero, cherne, cação-mangona ou um cação-cambeva, considerado o mais saboroso e tenro tubarão. – Recordando o ditado popular que: “cação é o tubarão que a gente come e o tubarão é o cação que come a gente”. 

Assim, passadas horas, Titio retornava ao porto com o pescado auferido. Como sempre viveu sozinho, ao chegar, no horário próximo ao meio-dia, consertava[1] o melhor peixe e preparava o almoço lauto, embora simples a ele.

Em certa manhã de sol e brisa mansa, em sua costumeira pescaria, lançou o espinhel com um velador de tamanho grande, não muito usual, para poder enxergar à maior distância e remou em rumo de fora ao oceano aberto para tentar a sorte. Fundeou a embarcação com uma poita pequena, deixando o cabo bem curto, quase a prumo, e arremessou a linha munida de anzol grande iscada com metade de uma combreia (enguia). Passou um tempo sem qualquer beliscada, enquanto tio João se distraía com algumas palombetas miúdas que ia desferrando do anzol pequeno do caniço curto que usava. 

Eis que de repente, a linha trançada ao banco do meio tesou e por pouco não emborcou a canoa. Ele, imediatamente, fez peso com o corpo no bordo contrário, equilibrando a flutuação a dar estabilidade. Guardou o caniço e deu mais fieira ao peixe que tentava arrastar a embarcação, pela popa, fundeada com a amarra na proa. A luta se estendeu por mais de uma hora entre o lobo do mar solitário e a enigmática presa que parecia enorme. Ora, tio João soltava corda de amarra ancorada na poita e colhia linha de pesca, ora a soltava indefinidamente, içando o cabo de amarra da âncora para cansar o que havia ferrado, que parecia não ceder facilmente. 

Pela luta contínua, as energias de ambos iam se esvaindo. Finalmente, a capitulação ou preito do vencido e a expectativa de triunfo do pescador cansado, que pôde recolher a poita e deixar a presa ir conduzindo a canoa a seu bel-prazer que, casualmente, era em direção a terra, no mesmo sentido que levava ao velador do apetrecho de pesca fundeado. E, pouco a pouco, João colhia a linha sem que o oponente sentisse. Já com poucas forças para o embate final, o peixe estava perto, embora em maior profundidade da água turva causada pela lestada da semana anterior que provocou enormes marolas no mar. A cada onda que vinha, a nau pendia e por pouco não bebia água pela borda tracionada à força do enorme peso. A contrabalançar o adernamento, o marinheiro safo mantinha o contrapeso no bordo oposto, o que lhe cansava, deixando-o tenso ante o naufrágio iminente. A poucos metros da canoa, o tubarão surgiu, a tempo suficiente para aquilatar seu grande porte e arquitetar o embarque.

João, homem de grande experiência, conhecedor das artimanhas, sabia que se provocasse o segmento de ré do animal, ele soltaria o estômago pela boca e morreria. Por essa razão, é que a fim de liquidar o tubarão com maior facilidade, pescadores tentam laçar ou bucheirar o rabo dele, tracionando-o para trás, na direção oposta ao seu deslocamento natural, já que o estômago é solto no interior da barriga e, qualquer movimento contrário à frente, pode fazê-lo expelir pela boca. Outra prática usual seria golpeá-lo na cabeça.

Tio João preferiu bucheirá-lo pela boca para depois golpeá-lo. Apesar das poucas forças que lhe sobravam, trouxe o peixe à borda e enrolou o seio da linha na toleteira do lado oposto da embarcação, mantendo-a estável e a presa seguramente ferrada. 

Munido do porrete de ipê-caçaranha na mão direita e o bucheiro[2] de cabo em madeira de lei amarrado por uma corda que a trançou ao banco da proa, passando-a pelo escovém, o velho se preparou ao desfecho do embate. Daquela forma, conseguiu cravar o robusto anzol do bucheiro no canto da boca do tubarão, imobilizando a cabeça junto à borda. Foi ali que pôde analisar a espécie, reconhecendo ser uma mangona, excelente ao consumo humano. 

Ao tencionar o cabo, tracionando-o pela corda, João colocou o foucinho do cação para o lado de dentro da canoa, em seguida desfechou várias bordoadas à cabeça do animal que pareceu desfalecido. Mantendo a borda próxima ao nível da água, com sacrifício ele conseguiu embarcá-lo, estimando que, pelo esforço dispendido, pesasse uns setenta quilos.

Semidesfalecida, a mangona agonizava no fundo da embarcação, enquanto João pôs-se a remar até ao aparelho de pesca fundeado. Remava em pé junto ao rabo do peixe, por ter ciência de que exemplares daquela espécie quando colocados sobre o convés de um barco, vivos ainda, são capazes de rastejar e atacar o que estiver pela frente, semelhante a um cachorro. Por isso, o cuidado de ficar posicionado atrás da fera – alerta ao estado de letargia do cão. 

Não demorou, já perto do espinhel, o tubarão-mangona deu um pinote, quase a cair ao mar, voltando-se em sentido contrário, a cento e oitenta graus da posição em que jazia no fundo da canoa. Ato contínuo, abocanhou a perna do homem que não conseguia desvencilhá-la daquela bocarra parecendo ter por último movimento vital, o cerramento dos dentes cravados à sua panturrilha esquerda. O velho lobo do mar com toda a fleuma, grande característica do experiente pescador, abandonou o material fundeado e singrou calmamente até seu porto de origem, com a mangona agarrada a ele, que ao chegar, recebeu socorro, ocasião em que serraram as laterais da enorme mandíbula para liberar sua perna.

Eu conheci o tio João, o João Mariquinha, como o chamavam por ser filho da tia Mariquinha, já velho e ainda solteirão, sempre mancando. Lembro-me de que quando ele arregaçava a calça até aos joelhos, para entrar ao mar, notava-se a falta da barriga de sua perna esquerda. 

[1] É o procedimento para limpar o peixe: tirar as escamas (escamar) e desviscerá-lo. 

[2] Grande anzol, munido de cabo de madeira amarrado a uma corda, que serve para bucheirar, ou seja, prender a presa para então içá-la à embarcação.

                            *  Do livro CONTOS E CAUSOS CONTADO - E-BOOK - AMAZON 

                              ]

 

 

27 comentários:

  1. Um homem de coragem, seu tio João.
    Um abraço e uma boa semana

    ResponderExcluir
  2. Laerte, depois de ler O tubarão cachorro não posso ter dúvida de que as férias passadas na tua terra natal rendem sabedoria e inspiração. Para quem tiver dúvida do que afirmo, tirem-na com a leitura dessa ótima história, contada com fluidez de quem domina a técnica da narrativa.
    Claro que para quem conhece pouco do mar, como eu, dos que o habitam, e também de todas as manhas relacionadas a arte da pesca, e tudo o que envolve o ato de pescar, tem que fazer essa leitura com mais vagar, para que tudo fique entendido.
    Gostei muito dessa história, meu amigo.
    Um grande abraço.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Meu Caríssimo Pedro Luso, tu és muito gentil a me insuflar o ânimo para continuar escrevendo, mas muito tenho que lapidar meu ofício. Procuro a cada dia ser mais claro e lógico em meus textos, contudo é difícil escrever bem. Tendo amigos como tu e outros tantos que me dão ânimo, irei adiante na trilha de vocês que escrevem tão bem. Minha gratidão e meu efusivo abraço. Laerte.

      Excluir
  3. Gostei de conhecer a vida, um bocado da vida, de um lobo do mar.
    Aquele abraço, boa semana

    ResponderExcluir
  4. Grande amigo Pedro Coimbra, ilustre causídico (como dizem por cá), é sempre uma honra imensa ler suas palavras aqui e satisfação enorme em ver que o amigo leu a história inteira que imaginei ser meio "tipo espada", comprida e chata... Eis que me dei conta que lobo-do-mar é um animal marinho e lobo do mar é um marinheiro velho. Minha gratidão, meu amigo! Grande abraço. Laerte.

    ResponderExcluir
  5. Gostei imenso de ler esta história muito bem contada, com um vocabulário muito rico. Por vezes lembrei-me do livro "o velho e o mar" de Hemingway... Gente valente que anda no mar...
    Uma boa semana.
    Beijos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim Graça, são os descendentes portugueses dos açores que devem trazer no sangue o "navegar é preciso, viver não é preciso". Lá, nessa época morriam muitos pescadores em naufrágios corriqueiros. Muito obrigado. Grande abraço. Laerte.

      Excluir
  6. Uma narrativa muito interessante, com factos muito bem descritos e escritos...
    Talvez um descendente dos velhos lobos do mar que em tempos
    remotos pescavam baleias - nas nossas ilhas - mister indispensável ao seu sustento e de suas famílias...
    Laerte, gostei muito e aprecio este género de relatos de glórias de heróis anónimos.
    Uma semana especialmente amorosa, amigo.
    Abraço.
    ~~~

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Minha gratidão, Majo! São sim, os nossos ancestrais dos Açores - intrépidos pescadores que não tinham medo de nada e desafiavam a vida e a morte o tempo inteiro para o sustento da família que ficava a rezar na beira da praia quando o pescador não chegava ao tempo estimado. Grande abraço. Laerte.

      Excluir
  7. Impressionante, Laerte, como lendo os amigos, suas histórias tão bem contadas, voltam nossas recordações de infância, de adolescência. Esse teu ótimo texto me fez lembrar de meu pai, seu maior prazer era pescar, deixar as tensões da semana no mar, pescando, segundo ele, enormes peixes, criava suas histórias e vinha direto me contar, só porque eu escutava e ria, ria... Claro, fomos inúmeras, incontáveis vezes pescar nos Molhes de Rio Grande, no mar em Tramandaí etc. Dizia ele que era o Homem do mar! Tinha paixão. E essa tua bela história me trouxe recordações tão lindas...e saudades. Agradeça lá seu tio João!! Sinto pela sua perna...
    Grande abraço, amigo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valeu, Tais! E lembrei-me, pela história de teu pai médico e pescador, de uma décima que fiz sobre o pescador profissional que levava turistas à pescaria e no fim ele chegou a conclusão que tinha a melhor vida do mundo, pois os ricaços queriam fazer por prazer o que ele fazia diariamente... Porém àquele tempo a faina marítima matou muitos pescadores. Eram intrépidos heróis que saíam e não sabiam se iriam voltar. Os naufrágios eram inúmeros. Mas claro que uma pescaria sem riscos é tudo de bom. Grande abraço. Laerte.

      Excluir
  8. Pois é amigo, nem sempre se pode acreditar em
    tudo o que nos dizem. Sofreu bem as consequências.
    Gostei de ler.

    Um abraço, amigo.
    Irene Alves

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Estive no seu blog recomendado. Legal rever os papéis antigo e assumir o papel do presente para sonhar. Obrigado pela visita. Tudo de bom. Laerte.

      Excluir
  9. Interessante postar neste espaço, comentário por e-mail de Cláudio Bersi de Souza, relativo a um tubarão-anequim que à época do fato aqui registrado, foi pescado por Romeu Custódio, lá também. "Era um animal tão grande que não conseguiram embarcar na baleeira, inteiro e os quatro tripulantes o esquartejaram à borda da lancha, para embarcá-lo. Somente o fígado do animal, vendido para remédio ao laboratório Andrômaco, pesou 11 arrobas, 165kg. Foi o maior tubarão capturado naquela região, que se tem notícia".

    ResponderExcluir
  10. Olá Silo
    você narrou lindamente.
    Gostei muito.

    Abraço

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Fernanda! Que bom que gostou, assim como gostei imensamente do teu espaço. Cordialmente. Laerte (Silo).

      Excluir
  11. Surpreso mas agradado com a sua visita.
    Gostei do estilo do comentário.
    ~Belo Post.
    Obrigado

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amigo, muito obrigado por honrosa visita ao meu modesto espaço! Gostei imensamente de testemunhar tamanha coleção de magníficas peças que só um grande artista é capaz de produzir. Amo Portugal, de onde descendo, e todas as suas manifestações artísticas, principalmente a arte literária e de ourivesaria. Não conhecia esse tipo de trabalho a não ser a porcelana como a Vista Alegre e a cerâmica de Barcelos (creio estar certo) como produtos industriais. Fiquei fascinado com as peças únicas produzida pelo amigo. Meus parabéns! Ganhou um admirador que voltará lá ao seu espaço outras vezes. Minha gratidão! Cordialmente. Laerte.

      Excluir
  12. Que pescador corajoso esse seu tio Laerte, e o meu amigo fez-lhe justiça partilhando esta extraordinária odisseia.

    Ainda bem que voltou para o nosso convívio, já tinha saudades da sua escrita.

    Um beijinho

    (antiga Fê blue bird :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Fernanda, fico vermelho com tamanho elogio. Agradeço as palavras de carinho. Também tive saudades de vocês. Mas como dizem que saudades é o amor que permanece em nossos corações. Na ausência, eu os amava. Minha gratidão. Laerte.

      Excluir
  13. Olá, amigo Laerte!

    Que história fabulosa, corajosa e nós sempre querendo saber o que iria suceder ao Tio João, ao longo da leitura.

    Há homens, pescadores, principalmente esses, que arriscam tudo ou quase tudo no mar. É que espinel não é tubarão. Graças a Deus, que resultou tudo em bem, embora nosso valente pescador tenha ficado sem a barriga da perna esquerda, mas isso, decerto, para ele foi uma vitória.

    Cordiais abraços e boa semana.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que gostou, Céu. Ele era dos velhos lobos do mar, descendente dos Açores (Seus avós, creio). Grande abraço. Laerte.

      Excluir
  14. Um relato de arrepiar, seu tio foi um guerreiro, lutar com um Tubara e sair vivo ´é coragem pra mamar em onça ao meio dia. Belo conto.
    Desejo uma tarde de paz!

    Abraço!

    ResponderExcluir