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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

LEMBRANÇAS DOS POMBEIROS

                  Obra de Angel San Martim                           Varina portuguesa 

                         Pombeiro da antiga Desterro (Florianópolis) - fonte: Portal Floria Centro

(...)
Depois de seco e empilhado
O pescado ia ao consumo
Com porções, a cada rumo,
Dependendo do mercado.
Vendido no atacado,
Também aos comerciantes
Que cotavam o preço antes
De obter mercadoria.
E, no final, ele se ia
Por pombeiros – ambulantes.

Trecho do livro: Ilha de Idílios


    Conhece-se o pombeiro como uma figura folclórica dos Açores e do litoral de Santa Catarina. Sujeito ambulante que comercializava de tudo: peru, pomba, galinha, fruta, hortaliça, e no nosso litoral, principalmente, peixes dos mais diversos. Existiam também as varinas, em Portugal, mulheres que transportavam o produto em canastras ou cestos rasos sobre a cabeça protegida por um arco de tecido improvisado com um lenço enrolado. Aqui, o pombeiro percorria as ruas carregando aos ombros um cambão, vara que sustentava, em cada extremidade, uma balaia pendurada por cordoalhas. Os cestos eram cheios com porções iguais no peso, para dar equilíbrio à carga, facilitando a locomoção do vendedor no anúncio e nas vendas dos seus produtos, às portas. Havia alguns pombeiros que possuíam burros de cargas, e nos cestos ou serões dispostos nas laterais da cavalgadura, transportavam a mercadoria. Pelas ruas anunciavam, em voz alta, a natureza do que vendiam. Sabe-se até que um deles, meio atrevido, certa vez se deu mal ao anunciar: "ovo e uva boa", frente à casa de uma recente viúva.
    Na verdade, ainda hoje há um pombeiro que passa pela minha rua vendendo camarão, transportado em baldes plásticos. Sou do tempo em que camarões eram comercializados pelos próprios tarrafeadores que saiam às ruas com os samburás cheios e os vendiam por cambulhões, porções resultantes das coletas possíveis desses crustáceos pegos, aleatoriamente, pelas barbas. E, ainda gratificavam o comprador com uma inhapa – que seria uma porção a mais do produto – como um agrado ao freguês.
    Mais tarde, para quantificar o produto, começaram a medi-lo pelo volume de uma latinha de azeite destapada, que afirmavam pesar um quilo. Caso o freguês dissesse que o camarão era graúdo só na parte de cima do samburá e miúdo por baixo, o vendedor fazia uma demonstração engenhosa para ludibriar o desavisado. Levava a mão espalmada até o fundo do cesto, mantendo cuidado de prender na forqueta do polegar e do indicador, um camarão graúdo de cima e, ziguezagueando com movimentos para baixo, a desviar de esporões, trazia-o facilmente para cima. Finalmente, dizia: Táx vendo teimoso, como eu não minto!...

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O TUBARÃO CACHORRO



Armação do Itapocoróy, Penha, SC, Brasil
ARMAÇÃO DE ITAPOCORÓI

A história que eu conhecia em parte e a confirmei, ocorrida em praia de pescadores artesanais do litoral catarinense, local onde fui criado, passou-se há muito tempo, mesmo assim, guardo várias lembranças e um episódio em particular. Os habitantes dali eram, em sua maioria, de descendência portuguesa com a predominância de pessoas vindas dos Açores em meados do século XVIII, e ali se estabeleceram dedicando-se à faina pesqueira. Muitos viviam em função de uma armação baleeira que, à época, servia de base à extração do óleo de baleia, produto usado na iluminação e à exportação. 

Em razão de meu esquecimento dos detalhes, conferi alguns dados do causo em foco, com pescadores do lugar, onde possuo uma enormidade de amigos e com meu primo Cláudio Bersi de Souza, emérito conhecedor da história da região, cujo fato teria acontecido com nosso tio-avô, o senhor João Nepomuceno de Souza.

Sabe-se que tio João costumava ir à lida sem camarada, por gostar de pescar sozinho. Contava apenas com a ajuda da força de um madrugador para colocar sua canoa ao mar, feita de um só tronco de garapuvu. E ainda, na pouca luz do dia nascente, lá ia ele à força do remo de pá ao encontro das presas, a cerca de quatro milhas da praia. Levava na balaia, já iscado, o seu espinhel fino de uns duzentos anzóis e fundeava-o um pouco mais em terra. Enquanto ficava no aguardo do que seria capturado naquele aparelho, remava mais para fora, e pescava de linha e de caniço. Estava sempre munido de iscas adequadas às águas profundas, destinadas às presas maiores como mero, cherne, cação-mangona ou um cação-cambeva, considerado o mais saboroso e tenro tubarão. – Recordando o ditado popular que: “cação é o tubarão que a gente come e o tubarão é o cação que come a gente”. 

Assim, passadas horas, Titio retornava ao porto com o pescado auferido. Como sempre viveu sozinho, ao chegar, no horário próximo ao meio-dia, consertava[1] o melhor peixe e preparava o almoço lauto, embora simples a ele.

Em certa manhã de sol e brisa mansa, em sua costumeira pescaria, lançou o espinhel com um velador de tamanho grande, não muito usual, para poder enxergar à maior distância e remou em rumo de fora ao oceano aberto para tentar a sorte. Fundeou a embarcação com uma poita pequena, deixando o cabo bem curto, quase a prumo, e arremessou a linha munida de anzol grande iscada com metade de uma combreia (enguia). Passou um tempo sem qualquer beliscada, enquanto tio João se distraía com algumas palombetas miúdas que ia desferrando do anzol pequeno do caniço curto que usava. 

Eis que de repente, a linha trançada ao banco do meio tesou e por pouco não emborcou a canoa. Ele, imediatamente, fez peso com o corpo no bordo contrário, equilibrando a flutuação a dar estabilidade. Guardou o caniço e deu mais fieira ao peixe que tentava arrastar a embarcação, pela popa, fundeada com a amarra na proa. A luta se estendeu por mais de uma hora entre o lobo do mar solitário e a enigmática presa que parecia enorme. Ora, tio João soltava corda de amarra ancorada na poita e colhia linha de pesca, ora a soltava indefinidamente, içando o cabo de amarra da âncora para cansar o que havia ferrado, que parecia não ceder facilmente. 

Pela luta contínua, as energias de ambos iam se esvaindo. Finalmente, a capitulação ou preito do vencido e a expectativa de triunfo do pescador cansado, que pôde recolher a poita e deixar a presa ir conduzindo a canoa a seu bel-prazer que, casualmente, era em direção a terra, no mesmo sentido que levava ao velador do apetrecho de pesca fundeado. E, pouco a pouco, João colhia a linha sem que o oponente sentisse. Já com poucas forças para o embate final, o peixe estava perto, embora em maior profundidade da água turva causada pela lestada da semana anterior que provocou enormes marolas no mar. A cada onda que vinha, a nau pendia e por pouco não bebia água pela borda tracionada à força do enorme peso. A contrabalançar o adernamento, o marinheiro safo mantinha o contrapeso no bordo oposto, o que lhe cansava, deixando-o tenso ante o naufrágio iminente. A poucos metros da canoa, o tubarão surgiu, a tempo suficiente para aquilatar seu grande porte e arquitetar o embarque.

João, homem de grande experiência, conhecedor das artimanhas, sabia que se provocasse o segmento de ré do animal, ele soltaria o estômago pela boca e morreria. Por essa razão, é que a fim de liquidar o tubarão com maior facilidade, pescadores tentam laçar ou bucheirar o rabo dele, tracionando-o para trás, na direção oposta ao seu deslocamento natural, já que o estômago é solto no interior da barriga e, qualquer movimento contrário à frente, pode fazê-lo expelir pela boca. Outra prática usual seria golpeá-lo na cabeça.

Tio João preferiu bucheirá-lo pela boca para depois golpeá-lo. Apesar das poucas forças que lhe sobravam, trouxe o peixe à borda e enrolou o seio da linha na toleteira do lado oposto da embarcação, mantendo-a estável e a presa seguramente ferrada. 

Munido do porrete de ipê-caçaranha na mão direita e o bucheiro[2] de cabo em madeira de lei amarrado por uma corda que a trançou ao banco da proa, passando-a pelo escovém, o velho se preparou ao desfecho do embate. Daquela forma, conseguiu cravar o robusto anzol do bucheiro no canto da boca do tubarão, imobilizando a cabeça junto à borda. Foi ali que pôde analisar a espécie, reconhecendo ser uma mangona, excelente ao consumo humano. 

Ao tencionar o cabo, tracionando-o pela corda, João colocou o foucinho do cação para o lado de dentro da canoa, em seguida desfechou várias bordoadas à cabeça do animal que pareceu desfalecido. Mantendo a borda próxima ao nível da água, com sacrifício ele conseguiu embarcá-lo, estimando que, pelo esforço dispendido, pesasse uns setenta quilos.

Semidesfalecida, a mangona agonizava no fundo da embarcação, enquanto João pôs-se a remar até ao aparelho de pesca fundeado. Remava em pé junto ao rabo do peixe, por ter ciência de que exemplares daquela espécie quando colocados sobre o convés de um barco, vivos ainda, são capazes de rastejar e atacar o que estiver pela frente, semelhante a um cachorro. Por isso, o cuidado de ficar posicionado atrás da fera – alerta ao estado de letargia do cão. 

Não demorou, já perto do espinhel, o tubarão-mangona deu um pinote, quase a cair ao mar, voltando-se em sentido contrário, a cento e oitenta graus da posição em que jazia no fundo da canoa. Ato contínuo, abocanhou a perna do homem que não conseguia desvencilhá-la daquela bocarra parecendo ter por último movimento vital, o cerramento dos dentes cravados à sua panturrilha esquerda. O velho lobo do mar com toda a fleuma, grande característica do experiente pescador, abandonou o material fundeado e singrou calmamente até seu porto de origem, com a mangona agarrada a ele, que ao chegar, recebeu socorro, ocasião em que serraram as laterais da enorme mandíbula para liberar sua perna.

Eu conheci o tio João, o João Mariquinha, como o chamavam por ser filho da tia Mariquinha, já velho e ainda solteirão, sempre mancando. Lembro-me de que quando ele arregaçava a calça até aos joelhos, para entrar ao mar, notava-se a falta da barriga de sua perna esquerda. 

[1] É o procedimento para limpar o peixe: tirar as escamas (escamar) e desviscerá-lo. 

[2] Grande anzol, munido de cabo de madeira amarrado a uma corda, que serve para bucheirar, ou seja, prender a presa para então içá-la à embarcação.

                            *  Do livro CONTOS E CAUSOS CONTADO - E-BOOK - AMAZON 

                              ]

 

 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

CARMEN MIRANDA - A PORTUGUESA BRASILEIRA



    Hoje é dia do nascimento de Carmen Miranda. Portugal e Brasil são tão interligados por laços estruturais que eu me sinto um cidadão brasileiro com cidadania portuguesa ou um brasileiro português, assim como Carmem foi uma portuguesa brasileira. Dizem que comentava aos mais chegados amigos norte-americanos, para convencê-los que ela nada tinha a ver com os Estados Unidos da América e que apenas trabalhava naquele país, sentir-se ser uma artista brasileira e cidadã portuguesa.

     Carmen Miranda em 20 anos de carreira teve um total de 313 canções: com 279 gravações somente no Brasil e mais 34 nos EUA. Primeira artista latino-americana a ser convidada a imprimir suas mãos e pés no pátio do Grauman's Chinese Theatre, em 1941. Também se tornou a primeira sul-americana homenageada com uma estrela na Calçada da Fama. Em Hollywood foi oficialmente nomeada Carmen Miranda Square, em setembro de 1998. Atualmente, nenhum artista brasileiro teve tamanha projeção internacional como ela. 
    Carmen, de nacionalidade portuguesa, nasceu em Várzea da Ovelha e Aliviada, Marco de Canaveses, distrito do Porto, em 9 de fevereiro de 1909. Sua carreira artística transcorreu no Brasil, Estados Unidos e na China entre as décadas de 1930 e 1950. Também trabalhou em rádio, no teatro de revista, cinema e na televisão. A "Pequena Notável", como era denominada, chegou ao Brasil com menos de um ano de idade, acompanhada de sua mãe e uma irmã, reencontrando o pai (função de barbeiro) que já morava no país há pouco mais de um ano.

     No Rio de Janeiro, Carmen inicialmente trabalhou como vendedora de gravatas em uma loja e posteriormente em uma chapelaria. Relatos confirmam que, inspirada na irmã Olinda, ela cantava para atrair clientes.  

Cantaste como um pássaro que canta
Para encantar com canto e com encanto
A alma alegre de um povo, e entretanto,
De ave afável, tu passaste a santa

Por maviosa voz que se levanta 
E brada a altivez do pobre, santo
E alegre povo para grande espanto, 
Por mega voz de pequena garganta,

De um universo inteiro de artistas.
Carmen Miranda, as tuas conquistas
Engrandeceram Brasil / Portugal

E hoje vives em nossa memória 
Como expoente vivo de uma história
Cantada em versos, por Ser Imortal.